quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Sobre os ventos

Deixe que o vento sopre para onde ele deve soprar. Sopre você por pensamento. Não se muda a direção dos astros nem dos sentimentos. Vento não se vê. Não há perguntas, não há motivos, não há respostas. Só há sopro: que chega, que afasta, que acalma, que dilacera. Vá você no meu lugar, se arriscar a ser dono da natureza. Eu aqui, sem esperar resultados, muitas vezes sinto o vento que não me é guardado. Meteorologistas falham, vento ligeiro não se prevê. Mas é assim, do nada, que ele chega. Ora como um soco, ora como um beijo.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Vida

Insistentes na vida incoerente, inconsequente. Vida dependente: ora atraente, ora conveniente. Pra uns vida é nascente. Pra outros, poente. Vida corrente. Vida-gente. Tem gente q pesa a vida, tem vida q pesa gente. Tem gente q não dá conta da vida, tem vida q não dá conta de gente. Tem vida, tem gente.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Patafísica

"Ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções". Se expressa por meio de uma linguagem aparentemente nonsense, resultando em um modo pessoal e anárquico de explicar o absurso da existência.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

E o verbo se fez carne

Devido à quantidade de gente no mundo, o Ministro da Reencarnação informou Deus sobre um grave problema espiritual: a falta de almas para voltar à Terra. Isso porque, com mais gente nascendo que morrendo, faltavam espíritos para reencarnar. Deus, no ápice de sua onisciência, olhou para o ministro e disse: "Se falta espírito de gente, mande lá pra baixo espíritos de porcos". E o verbo se fez carne.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Pleura

Após, décadas e mais décadas de fiel amizade, fumou tanto que a nicotina e as outras 4.700 substâncias descolaram a sua pleura. Um dia, numa tarde cinzenta e nebulosa, numa mistura de enjôo com pigarro, tossiu tanto que vomitou o seu pulmão.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Pic-nic

Mais de quinze minutos e eles não desviavam o olhar. Silêncio. Estavam apaixonados ao ponto que quererem entrar um dentro do outro. De se abraçarem tão forte até sentirem seus corações juntos, colados, pulsando no mesmo ritmo. Ele a levava até a porta de casa todos os dias, carregava seus livros, era extremamente tímido, envergonhado, coisas do primeiro amor. Ela custou a se render aos seus encantos, seguia os conselhos da mãe, era uma moça de família. Davam bitocas e beijinhos, pegavam nas mãos, mas nada que ousasse cruzar qualquer tipo de fronteira. As duas tradicionais famílias mineiras aplaudiam o desempenho do casal na condução daquele namoro cor-de-rosa. Eram sempre educados um com o outro, falavam baixo, estavam sempre limpos, não ficavam até tarde na rua para não pegarem sereno. Ele havia passado, quase mutilado, pelo crivo do temido pai da moça. Ela já trocava confidências com a mãe do rapaz. As duas famílias almoçavam juntas no domingo e já apostavam as fichas no futuro do casal. A mãe dele achava a mãe dela meio metida, assim como o pai dela achava o pai dele pouco viril. Mas todos mantinham a classe, a elegância e a união familiar necessária à felicidade. O tempo foi passando e, apesar da pouca intimidade, estavam novamente naquele parque, parados, apaixonados, olhando um para o outro há 15 minutos, sem dizer uma só palavra. Ela trouxera para o pic-nic  todos os quitutes que ele mais gostava. Ele se embriagava nos clichês juramentos de amor eterno, até que a morte os separasse, amém. Foi aí que, ali parado, com um sorriso besta estampado no rosto, ele sentiu a primeira contração. E logo a segunda, a terceira, a quarta, infinitas. Levantou-se. Seu intestino se contorcia em um movimento peristáltico tão frenético, que foi incapaz de completar a frase. “Eu acho que vou...”. Foi ali mesmo, sem o menor controle da situação ou pudor, que se ouviu a explosão. Roupas, toalhas, frutas, pães, iogurtes e sorvetes. O colo da menina ficou completamente empapuçado, assim como parte do vestido e até do cabelo. Estava tudo, todos, completamente cagados. Assustada, sentiu o cheiro da morte encobrir todo aquele conto de fadas. Levantou-se e saiu enojada. Nunca mais o procurou.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Azar

O carro havia estragado em uma estrada de terra praticamente deserta. Ele, que não entendia nada de mecânica, xingou todos os palavrões possíveis, deu um bicudo no para-choque, esbravejou contra a mãe de alguém, gritou todas as variáveis escatológicas possíveis. Se emputeceu e chorou. Tentou falar com algum mecânico de uma cidadezinha mais próxima. Chegaria em três horas. Desligou o telefone e canalizou toda sua ira para o pobre coitado, que teria que conseguir a motocicleta de um primo para chegar ao local. Fumava há quase 20 anos e tudo o que ele queria naquele momento era dar boas baforadas para espairecer. Pegou o maço de Plaza e procurou o isqueiro. Nada de fogo. Saiu revirando todo o automóvel em busca de algo que desse uma faísca. Emendaria um cigarro no outro até que o socorro chegasse. Nada. Porta malas, porta luvas, tapetes, banco. Não havia isqueiro, nem fósforo, nem acendedor.  Foi aí que, depois de praticamente virar o carro de cabeça para baixo e chacoalhar, achou, num cantinho nunca antes visto, um palito de fósforo perfeito. Deu um sorriso, fez uma cara de “a sorte bateu à minha porta” e saiu do carro, vitorioso. O resto era simples. Durante o serviço militar, havia tomado noções básicas de sobrevivência e sabia acender fósforos em qualquer superfície áspera. Pegou uma pedra da estrada e, após a terceira tentativa, fiat lux! Já era noite e o céu estava estrelado, límpido. Pôs a boca no cigarro com vontade. Puxou. Foi aí que, antes mesmo de dar o primeiro trago, uma gota d’água voluptuosa e imponente, de qualquer chuva desavisada, despencou do céu e atingiu em cheio a ponta acessa do cigarro. Ele ainda tentou recuperar a brasa, sem sucesso. A sorte, que naquele dia estava vestida de acaso, deu uma risada traiçoeira e foi embora. A graça, que já estava colada ao homem, rapidamente se despediu.

terça-feira, 1 de março de 2011

Caso de um escrivão

Aos doze, ela começou a se deitar com homens. Aos dezessete, experimentou mulheres. E aos vinte e três anos colecionava figurinhas e mais figurinhas de casos e experiências sexuais: homens mais velhos, mais novos, menores de idade, loiros, ruivos, morenos, gordos, magros, dotados, dotadas, senhoras, ursos, misses, loucas, prostitutas, drogados, travestis, transexuais. Não se sabe ao certo de onde veio a tara. Uns diziam que a avó era ninfomaníaca. Outros, que foi abusada por um vizinho na infância. O certo é que, desde pequena, já mostrava a que tinha vindo ao mundo. Certa vez na escola, quando tinha oito anos, a professora escreveu na lousa. “Eu queria ser uma borboleta para...”. “Beijar a sua buceta”, soltou em alto e bom tom. Expulsão. Aliás, o que não faltavam eram ocorrências e advertências nos colégios que passava. A tia, que criava a menina desde o acidente que matou os pais, já não sabia o que fazer. Com o tempo, fez uma novena, entregou para Deus e passou a não mais se preocupar com as peripécias da garota. Ela cresceu e não se tornou uma mulher bonita. Mas tinha fama de bem deitar na cama. Os rapazinhos da cidade, afoitos em se desvirginar, faziam a festa. Homens e mulheres casados também. O fato é que, não sendo uma cidade grande, a fama da mulher tomou proporções absurdas. Era pouco vista na rua, mas sua casa já havia sido apedrejada, recebia cartas anônimas, assinadas, com ameaças. As beatas já havia feito um abaixo assinado pedindo sua internação em um hospital psiquiátrico. Era uma mulher discreta. Não comentava com quem se deitava nem ao menos fazia escândalo. Mas era só alguém se aproximar de sua casa que se iniciava mais um falatório. Certo dia, quando constatou ter se deitado com mais da metade do município, resolveu dar no pé. Saiu caminhando, sem avisar ninguém, sem levar nada, em plena madrugada. Na estrada, pegou carona com um caminhoneiro que ia pro norte. É claro que saciou seus desejos em todas as paradas e estradas. Ganhava comida e bebida em troca. Mas nunca pedia nada. Eis que o caminhoneiro, admirado e impressionado com a potência de cinquenta mil cavalos que saia do seu ventre, a pediu em casamento durante a longa viagem. Ela negou. Foi abandonada na estrada, em um local que não fazia ideia. Não existem mais registros sobre a história da mulher, nem sobre seu paradeiro. Estas foram as últimas palavras escritas no inquérito sobre seu desaparecimento, antes de ser arquivado. Muitos anos depois, sua tia, já idosa, ligou para a delegacia. Ela havia se lembrado que a mulher, quando criança, sonhava em aprender tango. E a jogar cartas de tarô.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Temperança

A gula é insaciável, a modéstia é desapego, a luxúria é a sede sádica inflamável, o reconhecimento é necessário, a compaixão é católica, a proatividade é responsável, a generosidade é divisão, a avareza é possessiva, a moderação é careta, a amizade é irmandade, o amor é plenitude, a paixão é cegueira inconsequente, a esperança é falsa, o tesão é vulcânico, a cobiça só fica na vontade, a fé é resposta, a solidariedade é alívio na consciência, a sabedoria é para poucos, a pena é rebaixamento, a arrogância é fraqueza, a raiva faz mal pra quem sente, a ira é assassina, a traição anda pela sombra, a castidade é punição, a honra é status, a inveja quer ser triunfo, a preguiça é sonolenta, o equilíbrio é temperança.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Era

Pintava quadros que ninguém comprava, compunha músicas que ninguém gravava, escrevia poesias que ninguém lia. Os pedestres passavam por ele e não o notavam. Ninguém o notava. Não tinha identidade, não tinha papéis, nem direitos. Tinha histórias, mas ninguém sabia. Era destes invisíveis que se escondem nos rostos que ninguém vê, todos os dias. Se dizia artista de rua, dos becos, das portas fechadas. Bebia muito quando ganhava alguma coisa. Ninguém sabia quanto tempo ele vivia naquela esquina. Como ninguém percebeu o dia que ele morreu. Era, mas não existiu.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Sonhos morrem

A criança mais esperada de toda a família nasceu na madrugada chuvosa do dia treze de dezembro, entre uma e meia e duas da manhã. Era uma menina linda, de causar inveja a todos os outros pais que aguardavam seus filhos na maternidade: nasceu grande, loira, com os olhos enormes, cor de violeta. O obstetra disse que, depois do choro no parto, ela abriu um grande sorriso, como nunca antes tinha visto. As enfermeiras disputavam sua atenção e, com o passar dos anos, era a família, os pais, os vizinhos e os pedestres que queriam ficar próximos daquela nobre criatura. Os seus cachos dourados já batiam no ombro e seu olhar continuava vivo, intenso e muito esperto. A avó dizia que ela seria modelo e trabalharia na TV. Já o padrinho achava que ela seria médica. A mãe já delirava ao pensar que, com uma filha tão linda, os netos nasceriam perfeitos. “Imagina ela no dia do casamento, amor”, derretia-se com o marido em sonhos distantes. Vestia-se como uma boneca: fita cuidadosamente presa no cabelo, vestidinhos estampados que nunca se repetiam e sapatos que sempre combinavam com as fitas. E falava. Como falava. Abraçava desconhecidos na rua, dava beijos, entretia. Não existia mau humor que resistisse aos seus encantos. Quando fez três anos de idade, os pais resolveram matriculá-la na melhor escola da cidade. Logo na primeira semana, era notável como se destacava perante os demais alunos. As professoras comentavam: "Essa aí vai longe". Meses depois, numa bela tarde de outono, enquanto brincava com os coleguinhas no parquinho da escola, um pesado galho de um centenário Jatobá despencou num piscar de olhos. As professoras chegaram ao parquinho assustadas. Ainda dava pra ver parte dos dourados cachinhos misturados à areia e muito sangue. Era o fim de um sonho.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Desapego

Conta-se que um velho e adoentado rei da Pérsia, mais pra lá do que pra cá, não fazia outra coisa a não ser se preocupar com o futuro de seu reino. Isso porque, em mais de 50 anos de prática, ele não tinha feito sequer um filho varão, único que poderia substituí-lo após sua morte. Já somavam-se mais de 67 filhas, cada uma de uma mulher diferente: escravas, servas, concubinas, rainhas, esposas, viajantes e transeuntes. Porém, certo dia, estava o rei sentado em seu trono, à beira da desistência, já vendo a possibilidade de entregar seu reino a algum esposo de suas filhas ou às tropas inimigas, quando um mago estrangeiro chegou ao palácio e disse ao vizir. “Trago boas novas. Diga ao rei que encontrei a mulher perfeita, que lhe trará um herdeiro ao trono”. Ao saber da notícia, o rei, curioso, deixou que entrasse tal mago, que lhe disse. “Ó venturoso rei, conheço uma mulher que lhe trará um filho homem. Trata-se de uma prostituta de Bagdá, que dizem nunca parir uma filha mulher. Já está em seu décimo segundo filho, todos homens”. O rei ofereceu mil dinares para o velho mago, que trouxe ao palácio a famosa prostituta. A mulher, que parecia ter sido retirada da rua, exalava podridão e indecência. O rei teve certo nojo, respirou com calma, juntou todo tesão que ainda lhe faltava e consumiu a meretriz. Nove meses depois, vivendo no palácio do rei, eis que a mulher dá a luz ao herdeiro do trono. Sete dias de festa marcaram a chegada do príncipe. O menino, de uma beleza de envergonhar até a lua, nem parecia ter saído daquela pobre mulher. A pele alva, cabelos castanhos, os olhos claros, grandes e bem abertos permaneceram ao longo dos anos, quando os traços de um adulto já haviam moldado o jovem menino. Era um rapaz esbelto, inteligente e educado, falante de vários idiomas. Discorria longas e maravilhosas conclusões sobre as artes e cantava maravilhosamente bem. Qualquer jovem princesa aceitaria sua mão em casamento. O rei, já idoso, no fim da vida, poderia morrer feliz, já que em breve teu filho lhe daria netos e consolidaria a família frente ao reino. Certo dia, porém, durante uma festa regada a vinhos e música, o jovem príncipe desapareceu do palácio. A princípio, o rei achou que seu filho havia se engraçado com alguma nobre e que logo voltaria com o anúncio do casamento. Com o passar dos dias, a esperança do filho voltar para a casa se acabava aos poucos no coração do rei. Ele mobilizou todas as tropas do reino, deu esmolas aos mendigos e ofereceu tesouros de recompensa a quem trouxesse seu único filho de volta. Sem sucesso nas buscas, meses depois o rei amanheceu morto. Reinos vizinhos, deslumbrados com a possibilidade de abocanhar reino tão rico, invadiram o palácio, mataram todas as 67 filhas do rei e ali iniciaram um verdadeiro massacre pela disputa do reino. Bem longe dali, em uma praia do Mediterrâneo, o príncipe fugitivo nem sabia do que havia sucedido em sua antiga morada. Com o montante que acumulara durante sua jovem vida, havia construído uma casa simples, de frente para o mar. Lá, pela eternidade, viveu e se lambuzou com quem realmente era digno de todo o seu amor: o jovem escravo, também fugitivo, que todos os dias lhe dava banho no palácio.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Fugaz

Apaixonados. E nunca tinham ouvido a voz um do outro, nunca tinham se tocado. As carícias se davam pelo bater dos dedos no teclado, pelo prazer solitário, mas compartilhado. Bate-papo, tema: variados: música: rock progressivo: sala 4. Ele loiro, alemão, metalúrgico, presidente do fã clube municipal de Emerson, Lake & Palmer, cara de viking. Morava na fria cidade de Ahrensburg, no norte da Alemanha. Ela, recém separada, funcionária pública, brasileira, viajada, sem filhos, ninfomaníaca. De fato, não gostava de rock. Preferia bossa nova. Mas admirava roqueiros durões, daqueles que cospem no chão e falam palavrões cabeludos. Seu ex-marido era o ex-padre que não largou a batina. Passava fins de semana em retiros espirituais, ajudava na igreja, organizava cursos, encontros de casais, excursões para Aparecida do Norte. Ela, pouco devota, alimentava os desejos por pecados mais ardentes. Tentou aplicar um pouco mais de selvageria na relação, sem sucesso. Agora estava separada e apaixonada. O alemão era tudo o que ela queria. A ensinou a beber e a fumar, conversavam bobagens, putarias, passavam madrugadas em clima de boemia, para trabalhar no outro dia com uma ressaca das mais absurdas. Ele deu a imperfeição que ela tinha perdido. Ela, fogo quente de quem tinha começado a viver. Os meses se passaram. O sexo era diário. Ela, insaciável, o matava de prazer. Nem em prostitutas ele tinha visto tamanha sede. A loucura e o frenesi eram tantos que decidiram que se encontrariam pessoalmente. As férias dele estavam chegando. Passaria um mês no Brasil. Havia guardado um dinheiro que usaria para trocar de carro. Gastou tudo na passagem. Embarcou com sua melhor roupa com destino a Guarulhos. Ela o esperava na sala de desembarque. Vôo atrasado. Ela roía as unhas. Ele com gastrite nervosa. Ela impaciente. Ele pediu um vinho. Enquanto esperava, um homem alto, moreno, pinta de galã e braços torneados começou a puxar conversa com ela. 13 dias depois, uma ambulância chegou ao aeroporto. Na maca, o alemão dominado com camisa de força, se rebatendo entre comissários, enfermeiros e passageiros. O diagnóstico: surto psicótico. Ele delirava, repetindo “wird es ankommen”, que um dos passageiros disse significar “ela vai chegar”. Enquanto isso, não muito longe dali, entre tapas, mordidas e muita lambança, ela saciava todo o seu apetite com o moreno galã. E nem se lembrava mais o que tinha ido fazer naquele aeroporto.