segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Temperança

A gula é insaciável, a modéstia é desapego, a luxúria é a sede sádica inflamável, o reconhecimento é necessário, a compaixão é católica, a proatividade é responsável, a generosidade é divisão, a avareza é possessiva, a moderação é careta, a amizade é irmandade, o amor é plenitude, a paixão é cegueira inconsequente, a esperança é falsa, o tesão é vulcânico, a cobiça só fica na vontade, a fé é resposta, a solidariedade é alívio na consciência, a sabedoria é para poucos, a pena é rebaixamento, a arrogância é fraqueza, a raiva faz mal pra quem sente, a ira é assassina, a traição anda pela sombra, a castidade é punição, a honra é status, a inveja quer ser triunfo, a preguiça é sonolenta, o equilíbrio é temperança.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Era

Pintava quadros que ninguém comprava, compunha músicas que ninguém gravava, escrevia poesias que ninguém lia. Os pedestres passavam por ele e não o notavam. Ninguém o notava. Não tinha identidade, não tinha papéis, nem direitos. Tinha histórias, mas ninguém sabia. Era destes invisíveis que se escondem nos rostos que ninguém vê, todos os dias. Se dizia artista de rua, dos becos, das portas fechadas. Bebia muito quando ganhava alguma coisa. Ninguém sabia quanto tempo ele vivia naquela esquina. Como ninguém percebeu o dia que ele morreu. Era, mas não existiu.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Sonhos morrem

A criança mais esperada de toda a família nasceu na madrugada chuvosa do dia treze de dezembro, entre uma e meia e duas da manhã. Era uma menina linda, de causar inveja a todos os outros pais que aguardavam seus filhos na maternidade: nasceu grande, loira, com os olhos enormes, cor de violeta. O obstetra disse que, depois do choro no parto, ela abriu um grande sorriso, como nunca antes tinha visto. As enfermeiras disputavam sua atenção e, com o passar dos anos, era a família, os pais, os vizinhos e os pedestres que queriam ficar próximos daquela nobre criatura. Os seus cachos dourados já batiam no ombro e seu olhar continuava vivo, intenso e muito esperto. A avó dizia que ela seria modelo e trabalharia na TV. Já o padrinho achava que ela seria médica. A mãe já delirava ao pensar que, com uma filha tão linda, os netos nasceriam perfeitos. “Imagina ela no dia do casamento, amor”, derretia-se com o marido em sonhos distantes. Vestia-se como uma boneca: fita cuidadosamente presa no cabelo, vestidinhos estampados que nunca se repetiam e sapatos que sempre combinavam com as fitas. E falava. Como falava. Abraçava desconhecidos na rua, dava beijos, entretia. Não existia mau humor que resistisse aos seus encantos. Quando fez três anos de idade, os pais resolveram matriculá-la na melhor escola da cidade. Logo na primeira semana, era notável como se destacava perante os demais alunos. As professoras comentavam: "Essa aí vai longe". Meses depois, numa bela tarde de outono, enquanto brincava com os coleguinhas no parquinho da escola, um pesado galho de um centenário Jatobá despencou num piscar de olhos. As professoras chegaram ao parquinho assustadas. Ainda dava pra ver parte dos dourados cachinhos misturados à areia e muito sangue. Era o fim de um sonho.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Desapego

Conta-se que um velho e adoentado rei da Pérsia, mais pra lá do que pra cá, não fazia outra coisa a não ser se preocupar com o futuro de seu reino. Isso porque, em mais de 50 anos de prática, ele não tinha feito sequer um filho varão, único que poderia substituí-lo após sua morte. Já somavam-se mais de 67 filhas, cada uma de uma mulher diferente: escravas, servas, concubinas, rainhas, esposas, viajantes e transeuntes. Porém, certo dia, estava o rei sentado em seu trono, à beira da desistência, já vendo a possibilidade de entregar seu reino a algum esposo de suas filhas ou às tropas inimigas, quando um mago estrangeiro chegou ao palácio e disse ao vizir. “Trago boas novas. Diga ao rei que encontrei a mulher perfeita, que lhe trará um herdeiro ao trono”. Ao saber da notícia, o rei, curioso, deixou que entrasse tal mago, que lhe disse. “Ó venturoso rei, conheço uma mulher que lhe trará um filho homem. Trata-se de uma prostituta de Bagdá, que dizem nunca parir uma filha mulher. Já está em seu décimo segundo filho, todos homens”. O rei ofereceu mil dinares para o velho mago, que trouxe ao palácio a famosa prostituta. A mulher, que parecia ter sido retirada da rua, exalava podridão e indecência. O rei teve certo nojo, respirou com calma, juntou todo tesão que ainda lhe faltava e consumiu a meretriz. Nove meses depois, vivendo no palácio do rei, eis que a mulher dá a luz ao herdeiro do trono. Sete dias de festa marcaram a chegada do príncipe. O menino, de uma beleza de envergonhar até a lua, nem parecia ter saído daquela pobre mulher. A pele alva, cabelos castanhos, os olhos claros, grandes e bem abertos permaneceram ao longo dos anos, quando os traços de um adulto já haviam moldado o jovem menino. Era um rapaz esbelto, inteligente e educado, falante de vários idiomas. Discorria longas e maravilhosas conclusões sobre as artes e cantava maravilhosamente bem. Qualquer jovem princesa aceitaria sua mão em casamento. O rei, já idoso, no fim da vida, poderia morrer feliz, já que em breve teu filho lhe daria netos e consolidaria a família frente ao reino. Certo dia, porém, durante uma festa regada a vinhos e música, o jovem príncipe desapareceu do palácio. A princípio, o rei achou que seu filho havia se engraçado com alguma nobre e que logo voltaria com o anúncio do casamento. Com o passar dos dias, a esperança do filho voltar para a casa se acabava aos poucos no coração do rei. Ele mobilizou todas as tropas do reino, deu esmolas aos mendigos e ofereceu tesouros de recompensa a quem trouxesse seu único filho de volta. Sem sucesso nas buscas, meses depois o rei amanheceu morto. Reinos vizinhos, deslumbrados com a possibilidade de abocanhar reino tão rico, invadiram o palácio, mataram todas as 67 filhas do rei e ali iniciaram um verdadeiro massacre pela disputa do reino. Bem longe dali, em uma praia do Mediterrâneo, o príncipe fugitivo nem sabia do que havia sucedido em sua antiga morada. Com o montante que acumulara durante sua jovem vida, havia construído uma casa simples, de frente para o mar. Lá, pela eternidade, viveu e se lambuzou com quem realmente era digno de todo o seu amor: o jovem escravo, também fugitivo, que todos os dias lhe dava banho no palácio.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Fugaz

Apaixonados. E nunca tinham ouvido a voz um do outro, nunca tinham se tocado. As carícias se davam pelo bater dos dedos no teclado, pelo prazer solitário, mas compartilhado. Bate-papo, tema: variados: música: rock progressivo: sala 4. Ele loiro, alemão, metalúrgico, presidente do fã clube municipal de Emerson, Lake & Palmer, cara de viking. Morava na fria cidade de Ahrensburg, no norte da Alemanha. Ela, recém separada, funcionária pública, brasileira, viajada, sem filhos, ninfomaníaca. De fato, não gostava de rock. Preferia bossa nova. Mas admirava roqueiros durões, daqueles que cospem no chão e falam palavrões cabeludos. Seu ex-marido era o ex-padre que não largou a batina. Passava fins de semana em retiros espirituais, ajudava na igreja, organizava cursos, encontros de casais, excursões para Aparecida do Norte. Ela, pouco devota, alimentava os desejos por pecados mais ardentes. Tentou aplicar um pouco mais de selvageria na relação, sem sucesso. Agora estava separada e apaixonada. O alemão era tudo o que ela queria. A ensinou a beber e a fumar, conversavam bobagens, putarias, passavam madrugadas em clima de boemia, para trabalhar no outro dia com uma ressaca das mais absurdas. Ele deu a imperfeição que ela tinha perdido. Ela, fogo quente de quem tinha começado a viver. Os meses se passaram. O sexo era diário. Ela, insaciável, o matava de prazer. Nem em prostitutas ele tinha visto tamanha sede. A loucura e o frenesi eram tantos que decidiram que se encontrariam pessoalmente. As férias dele estavam chegando. Passaria um mês no Brasil. Havia guardado um dinheiro que usaria para trocar de carro. Gastou tudo na passagem. Embarcou com sua melhor roupa com destino a Guarulhos. Ela o esperava na sala de desembarque. Vôo atrasado. Ela roía as unhas. Ele com gastrite nervosa. Ela impaciente. Ele pediu um vinho. Enquanto esperava, um homem alto, moreno, pinta de galã e braços torneados começou a puxar conversa com ela. 13 dias depois, uma ambulância chegou ao aeroporto. Na maca, o alemão dominado com camisa de força, se rebatendo entre comissários, enfermeiros e passageiros. O diagnóstico: surto psicótico. Ele delirava, repetindo “wird es ankommen”, que um dos passageiros disse significar “ela vai chegar”. Enquanto isso, não muito longe dali, entre tapas, mordidas e muita lambança, ela saciava todo o seu apetite com o moreno galã. E nem se lembrava mais o que tinha ido fazer naquele aeroporto.